O Monte Ramelau, ou em dialecto mambai Foho Tatamailau (“monte avô de
todos”), é a mais alta montanha da ilha de Timor e o ponto mais alto de
Timor-Leste, com 2.963 m de altitude (no período colonial foi o pico do império português). A
montanha localiza-se aproximadamente 120 km a sul da capital Díli, no
subdistrito de Hatu Builico, distrito de Ainaro.
Escalar até ao cume do Monte Ramelau foi o desafio mais difícil a que nos
propusemos nas nossas voltas por Timor. A tradição entre os turistas é subir a
tempo de assistir, lá em cima, ao nascer do sol. Em média, a subida leva entre 2h30
(para os mais bem preparados) e 3h30 (para os mais lentos). Existem duas
alternativas principais para fazê-lo: uma é jantar e dormir em Hatu Builico,
sair por volta das três da manhã e caminhar durante a noite até ao cume; a
outra é começar a caminhada ao final da tarde, dormir numa cabana a vinte
minutos do cume e acordar de madrugada para caminhar o percurso que falta.
Optámos pela primeira mas não estamos certos de que tenha sido a melhor!
A coisa começou mal ainda antes de irmos dormir: o guia que o gerente da
pousada nos tinha arranjado apareceu a dizer que, nessa noite, havia festa em
Hatu Builico e que por essa razão não iria acompanhar-nos (qual é a
probabilidade de escolhermos subir a montanha no dia em que há festa em Hatu
Builico? Ou será que Hatu Builico é a aldeia festivaleira cá do sítio?).
Ficámos logo doidos a ver o plano ir por água a baixo, mas o desistente tinha
uma alternativa preparada: o primo Jaime de catorze anos faria a caminhada
connosco. Bom, não gostámos nada da ideia de subir ao Ramelau durante a noite guiados
por um puto, mas ambos garantiram que ele conhecia perfeitamente os trilhos e
que fazia aquela caminhada semanalmente desde criança. Sem grandes alternativas
(ou subíamos com o Jaime, ou não subíamos), lá aceitámos a troca e fomos dormir
umas horinhas.
Às 2h30, levantámo-nos, equipámos com bons agasalhos, botas de caminhada e
laternas e tomámos o pequeno-almoço. O Jaime aparece-nos de chinelos e enrolado
num cobertor, acompanhado do amigo Ronaldo, de dez anos, que também decidiu ir.
Disseram-nos que não precisavam de mais nada e que os pais não se importavam
que eles subissem ao Ramelau sozinhos. Sinceramente, acreditámos.
Partimos então de carro até ao santuário do Ramelau, onde termina o caminho
transitável por automóveis. Quando saímos do carro, deslumbrámo-nos com o céu
mais estrelado que alguma vez vimos! Parecia mesmo que o espaço era habitado
por milhões de pirilampos. A altitude e o facto de não existir qualquer luz
artificial num raio de quilómetros faziam com que a luz da lua e da estrelas
estivesse magnificamente intensa. Memorável!
Aquecemos um pouco e começamos a subir o primeiro troço, que consiste numa
escadaria sem fim, cheios de determinação e a bom ritmo. O ritmo foi sendo
reduzido gradualmente e no final da escadaria (ainda só estávamos a andar há
vinte minutos) já a Joana estava de rastos. Parámos um pouco, sentámo-nos, bebemos
água e recomeçámos. Daí a nada já outros membros do grupo acusavam o cansaço.
Eram as pernas a latejar, o coração que parecia explodir, dor de burro, dores
nos joelhos, quebras de açúcar, quebras de tensão...enfim, tornou-se evidente a
nossa fraca forma física mas lá fomos continuando sempre a andar a um ritmo cada
vez mais lento. Entre um gole de água e um pacote de açúcar, foram inúmeras as
vezes em que pensámos desistir. A sério, houve momentos em que o mais sensato
pareceu-nos ser sentarmo-nos numa pedra qualquer e ali esperarmos pelo regresso
dos outros.
Se a primeira metade da subida abalou sobretudo a Joana, na segunda foi o
Bruno que se foi abaixo. Progredíamos a um ritmo lentíssimo e, por muito que o
Jaime dissesse que estávamos a ir bem e que já faltava pouco, podíamos jurar
que íamos ser o grupo mais lento da história das subidas ao Ramelau e, pior
ainda, aquele que não chegaria a tempo de ver o nascer do sol! Diga-se que o
Jaime não vacilou uma única vez. De facto, aqueles olhos e aquelas pernas
conheciam bem a montanha.
Foi a motivação mútua que nos fez continuar. Sempre que um parecia
estoirado, o outro incentivava-o a continuar, a pôr literalmente um pé à frente
do outro e então encontrámos a estratégia vencedora: andar dez minutos muito
devagar e parar um a dois minutos para recuperar o fôlego. Nunca andámos mais
do que aquilo, nem parámos mais do que isto. A subida continuamente íngreme
(sem um único troço plano), o piso de pedra solta e o vento cada vez mais frio
não perdoavam e tornavam tudo ainda mais difícil. Não tivesse sido esta
entreajuda permanente e facto de nenhum de nós querer defraudar o outro e ambos
teríamos desistido.
Mais decididos a cumprir o objectivo que nos tinha levado até ali, fomo-nos
arrastando até chegarmos à tal cabana onde se pode pernoitar. O nosso guia
benzeu-nos a todos, riscando uma cruz com terra na nossa testa. Disse-nos que
estávamos a entrar em terra de espíritos e quem não cumprisse a tradição e
mostrasse respeito pelos “antigos” não poderia continuar. É que, segundo a
crença local, quando uma pessoa nativa daquela região morre, o seu espírito vai
para o alto do Tatamailau e são os espíritos que guiam até ao cume os bons
viajantes e desnorteiam aqueles que não os respeitam.
Foi ao chegarmos a este ponto que, pela primeira vez, nos apercebemos de
que já estávamos a chegar, pois sabíamos que aquela cabana ficava apenas a
vinte minutos do cume. Naquela altura, no entanto, vinte minutos a subir
parecia-nos a continuação duma tortura eterna. Aproveitamos o descanso dado
pela pausa e pelo único momento de terreno quase plano para olharmos para o relógio
e qual não é a nossa surpresa quando vimos que afinal estávamos dentro da
média! Todos aqueles que nos relataram subidas em passo rápido quase sem
paragens não passam duns gabarolas, é o que é! A verdade é que nós, que fomos
sempre em passo (muito) lento e parámos um sem número de vezes, estávamos a
fazer o mesmo tempo que estes supostos “Pépes-rápidos”.
Com a motivação extra de estarmos “na recta da meta” sem atrasos, lá
seguimos com o vento a dar agora uma forte ajuda, uma vez que subia a encosta
da montanha connosco.
Por fim, quando a montanha parecia estar mesmo a acabar, ei-la: a estátua
da santa no topo do Monte Ramelau. Conseguimos! Chegámos! Alegria! Cansaço!
Preciso de me sentar! Olha, o sol ainda não nasceu! Não acredito que
conseguimos! Em 2h45! Ainda bem que não desistimos! Nem acredito que
conseguimos! (sim, pensámos e repetimos esta frase dezenas de vezes)
E assim foi, às 5h45 conquistámos o cume do Monte Ramelau. O frio era
imenso, o vento inexplicável, forte, gelado, ensurdecedor. Estávamos bem
agasalhados mas assim que tirávamos a mão do bolso ela parecia congelar e todos
os movimentos se faziam em câmara-lenta. Ficámos ali sentados, orgulhosos, a
contemplar a vista e o feito que acabaramos de alcançar. As núvens passavam por
nós a uma velocidade incrível e, ao fim de algum tempo, o sol começava
timidamente a aparecer. Ali permanecemos, imóveis, a ver, a sentir, a
descansar, a fotografar. As cores do céu mudaram. O sol nasceu. De repente,
tudo o que nos tinha levado até ali acabou. Já não havia motivo para permanecer
e descemos, despedindo-nos da montanha, do esforço e do sacrifício. Ficou tudo
lá em cima. E a descida foi bem mais fácil, claro.
À luz e ao calor do dia, pudemos então ver os trilhos por onde tínhamos
passado, os precipícios aos quais milagrosamente todos escapámos, os vales, as
ribeiras, as florestas destruídas por napalm que só agora começam a renascer,
as rochas, os troncos, os prados. Descemos alegres, com a ajuda da gravidade e
depressa chegámos ao carro.
Incrivelmente, nem o Jaime, nem o Ronaldo tinham fome ou sede, só calor.
Nós, meninos da cidade mal-preparados para as agruras da montanha, tínhamos
tudo, sobretudo exaustão. Em Hatu Builico, lanchámos, mudámos de roupa e
partimos para Díli. A prova estava superada!
Se nos perguntarem se a subida valeu a pena, valeu. Se não a tivéssemos
feito, ficariamos para sempre arrependidos a pensar como seria. Se nos
perguntarem se pensamos em lá voltar, não (pelo menos enquanto nos lembramos de
como esta custou). Se nos perguntarem se foi o nascer do sol mais bonito que
vimos em Timor, foi lindo mas fica em pé de igualdade com o de Jaco, de Díli e
outros tantos maravilhosos que já aqui vimos. Por isso, em nossa opinião, a
tradição turística não faz assim tanto sentido. Para aqueles que têm uma boa
preparação física, talvez seja indiferente, mas para todos os outros seria
muito melhor passarem uma noite bem dormida em Hatu Builico e pela fresca das
6h ou 7h da manhã subir a montanha e poder apreciar a paisagem, sem a pressão
de ter um momento certo para chegar lá acima e com a amenidade trazida pela luz
e calor do dia. Seria um belíssimo passeio de montanha, sem dúvida, e
certamente bem mais acessível à generalidade das pessoas.
Aqui ficam as fotografias para que possam apreciar a vista mais alta de
Timor-Leste e julgar por vocês próprios!
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Chegada às 5h45 |
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Bem "embrulhada", a apreciar os efeitos da luz |
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Mar de núvens |
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O vermelho passa a laranja |
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O sol começa a aparecer |
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Joana e o sol a nascer no Ramelau, para mais tarde recordar |
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Bruno e a nossa estrela-maior |
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O Glorioso no Ramelau! |
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Homenagem dos Comandos |
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Homenagem dos Atiradores |
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"Portugal, alto império que o sol logo em nascendo vê primeiro" |
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Homenagem dos ciclistas (têm a nossa total admiração) |
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A Santa |
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Nasceu! |
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Cada vez maior e mais brilhante! |
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O sol já alto |
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A despedida da montanha |
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Jaime e Ronaldo, nova geração de guias do Ramelau |